O DIÁLOGO COMO ESTRATÉGIA DE GESTÃO NO SUS
Ernande Valentin do Prado
RESUMO
A vivência
relatada foi desenvolvida entre julho e novembro de 2013, na cidade de Dias D’Ávila,
região metropolitana de Salvador, Bahia, em três comunidades rurais com aproximadamente
quinhentas famílias cada uma. Nestas comunidades, como em outras de Dias D’Ávila,
trabalhadores, aqui entendendo a gestão como parte dos trabalhadores, mantêm-se
distantes da população, porém almejamos promover o diálogo entre gestão,
população e trabalhadores e contribuir com a participação popular e o controle
social. A metodologia dos encontros privilegiou a escuta, o que potencializou a
compreensão da comunidade sobre a diferença entre discutir o serviço de saúde e
“a saúde”. Como resultados favoráveis, podemos considerar que houve avanço em
duas direções: primeiro – aproximação entre profissionais e comunidade. Segundo
- a equipe vivenciou a partilha de informações e ideias, demonstrando a importância
do escutar. Assim, as soluções pactuadas em sucessivas reuniões foram as
seguintes: reorganizar os processos assistenciais; implantar as ações
programáticas do Ministério da Saúde; apoiar a viabilização e a organização de
cooperativa e mediação com outros setores da prefeitura.
INTRODUÇÃO
A vivencia
iniciou-se em julho de 2013, na cidade de Dias D’Ávila, região metropolitana de
Salvador, Bahia, em três comunidades rurais com aproximadamente mil e
quinhentas pessoas ao todo. Ainda está em desenvolvimento, portanto, sujeita a
constatações de equívocos e correções de caminhos.
Antes de
iniciar o relato propriamente, é importante definir que o diálogo mencionado no
título do trabalho é entendido como possibilidade de práxis. Segundo Zitkoski (2008),
Paulo Freire dizia que o diálogo é uma práxis social capaz de modificações
constantes. E é justamente este aspecto do diálogo freireano que buscamos ao
pensar o Sistema Único de Saúde em Dias D’Ávila. Não é nossa intenção implantar
uma política estanque de participação popular, mas fomentar o diálogo para que
este estruture políticas e/ou as aperfeiçoe.
O IBGE
(2013) estima que em Dias D’Ávila vivam 75.103 pessoas, sendo que 3.977 estão na área rural. A cobertura da Estratégia Saúde da Família é de 68%. São
oito Unidades de Saúde distribuídas pela área urbana e cinco unidades de apoio
nas comunidades rurais.
Nestas
comunidades, como em outras de Dias D’Ávila, trabalhadores, aqui entendendo a
gestão como partes dos trabalhadores, mantêm-se distantes da população, como é
comum em muitas outras cidades. Porém almejamos promover o diálogo entre a população
e trabalhadores e contribuir com a participação popular e o controle social.
Entende-se que promoção de saúde não se faz para a população, mas com, o que é
coerente com a Carta de Otawa no trecho que diz: é preciso capacitar a comunidade para
que atue na melhoria de sua
qualidade de vida. É por isso que não pensamos o diálogo
como mais uma politica, mas como postura capaz de fomentar políticas mais
coerentes e capazes de dar resolutividade aos serviços.
A
experiência teve inicio a partir de “reclamações” da população quanto aos
serviços prestados pela equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) do bairro
Nova Dias D’Ávila, responsável também pelas áreas rurais das comunidades de
Biribeira, Boa Vista de Santa Helena e Emboacica. A equipe conta com todos os
profissionais preconizados, excetuando saúde bucal. O profissional médico é do
PROVAB, por isso trabalha quatro dias na semana, mas uma médica do município
atendendo no dia de estudo do PROVABIANO. As unidades de apoio contam apenas
com a técnica de enfermagem e agente comunitário de saúde (ACS) todos os dias.
Não há equipe de saúde bucal (ou melhor, não havia, mas a partir dos encontros
com a comunidade, a contratação da profissional foi antecipada), mas tinha
dentista duas vezes por semana. A responsabilidade é por uma área com
aproximadamente 4.300 pessoas, sendo aproximadamente 2.500 na área urbana e mais
ou menos 800 pessoas na Biribeira, que é o distrito mais próximo da área
urbana. Em Boa Vista de Santa Helena, vivem aproximadamente 600 pessoas e em
Emboacica, o distrito mais distante, aproximadamente 45 quilômetros do centro
urbano, vivem cerca de 400 pessoas.
Todos os
dias um carro da Secretaria de Saúde sai do centro de Dias D’Ávila levando os técnicos
de enfermagem. O horário de funcionamento varia conforme a distância
percorrida, que depende das condições da estrada, que não é pavimentada. A
região é área de extração de areia e dezenas de caminhões circulam por hora. Na
Biribeira a técnica, por morar lá, atende das 8 às 16 horas, porém em Boa Vista
de Santa Helena o horário de abertura depende da chegada do carro. O
encerramento do expediente é às 14 horas em Emboacica, entre as 14h30min e 15
horas em Boa Vista. Uma vez por semana, ao menos, a enfermeira vai aos
distritos e o médico, há cada 15 ou 30 dias, dependendo da agenda.
As queixas
da população são grandes e muitas vezes, inquestionáveis. Em geral, estão
relacionadas à estrutura ineficiente da rede e ao processo de trabalho que nem
sempre atende em primeiro lugar as necessidades da população. A estratégia da
gestão (representada pelo Apoio Institucional) era, e é, modificar esses aspectos,
por isso agendou-se encontro para “escutar” a comunidade e juntos pensar formas
de melhorar o serviço. A mobilização foi realizada pelos profissionais da
saúde, associação de moradores, escola e representantes da prefeitura.
Compareceram aproximadamente 20 pessoas no primeiro encontro. As queixas eram:
·
Pouca
disponibilidade de consultas médicas e odontológicas;
·
Falta
de medicações e exames;
·
Ausência
de ambulância;
·
Profissionais
com pouca capacitação e pouco atuantes;
A
metodologia do encontro privilegiou a escuta, de modo a legitimar e considerar
as reinvindicações e avançar no sentido de discutir não só o serviço, mas a
essência dos problemas. Segundo Vilaça (2002, p. 17), existe diferença entre
discutir o sistema de serviços de saúde e discutir o sistema de saúde. Sistema
de serviço de saúde diz respeito a “um sistema social temático unissetorial” e sistema
de saúde diz respeito às condições de vida da população. Já na primeira reunião
a comunidade compreendeu essa diferença e entrou em pauta as condições da
estrada e transporte, que causam diversas situações complicadas e impedem a
solução de outras. Avançou-se na discussão da necessidade de geração de emprego
e renda. Em síntese, avaliou-se o contexto do processo saúde-doença.
Após as
reflexões, os profissionais comprometeram-se a avaliar meios para atender as
reinvindicações e avançar na discussão de promoção de saúde. A comunidade
comprometeu-se a reunir-se com a associação de moradores para debater ações
voltadas à melhoria das condições de vida. Para dar seguimento à ação/reflexão
geradas, foi agendado novo encontro para o mês seguinte.
Como
resultados favoráveis, pode-se considerar que houve avanço em duas direções:
primeiro – aproximação entre profissionais e comunidade de modo que ambos
perceberam estar juntos nas limitações e possibilidades, ou seja, que precisam
estar em consonância para a prática de promoção de saúde, por exemplo. Segundo
- a equipe vivenciou a partilha de informações e ideias, demonstrando a
importância do escutar. Assim, as soluções pactuadas na Biribeira e logo em
seguida nas outras comunidades, foram as seguintes: reorganizar os processos
assistenciais; implantar as ações programáticas do Ministério da Saúde; apoiar
a viabilização e a organização de cooperativa; mediação com outros setores da
prefeitura e dar continuidade ao diálogo.
Nenhum
assunto é refutado como não sendo da saúde, embora surjam às vezes
questionamentos. Porém os próprios participantes se encarregam de esclarecer.
Um estudante de veterinária e outra de psicologia, em encontro do Estágio de
Vivencia no Sistema Único de Saúde (EV-SUS), que aconteceu em agosto de 2013, argumentaram
que deveríamos estar orientando a população sobre hanseníase, tuberculose,
entre outras doenças e não discutindo organização de cooperativa. Uma moradora tomou
a palavra e disse: “porque discutir hanseníase se aqui ninguém tem isso e nosso
problema é falta de emprego?”
Essa
discussão entre os estudantes e a comunidade confirma o que diz Minayo (1997)
ao afirmar que o conceito ampliado de saúde é de conhecimento da população e
que somos nós, os profissionais que temos dificuldade em compreender.
O conceito
ampliado de saúde da Constituição de 1988 diz que saúde depende de moradia,
emprego e renda, educação, cultura e acesso aos serviços de saúde, entre outras,
portanto nada do que tem sido discutido é inovador, mas apenas coerente com a Constituição
Federal de 1988.
A partir do
distrito de Emboacica outros dois reivindicaram encontros, e estes estão
acontecendo. Em cada comunidade a dinâmica é diferente. Na comunidade de Boa
Vista de Santa Helena, ainda não se avançou no sentido de discutir o conceito
de saúde. Por enquanto se está concentrando em torno de ações programáticas
como hipertensão e diabetes, saúde da criança, entre outros. Na comunidade da Biribeira
a discussão ainda está concentrada apenas no processo de trabalho da equipe e
da rede, porém há avanços consistentes no entendimento da dinâmica do fazer e o
quanto isso depende da participação da comunidade.
Em todas
as comunidades, entendeu-se que o SUS só vai ser como a população precisa a
partir da participação de todos e de cada um. Prado, Santos e Cubas (2009)
dizem que para modificar os processos de saúde e o modelo assistencial é
preciso, antes qualquer coisa, envolver a população, pois essas mudanças
precisam partir da compreensão do usuário dos serviços e, para fazer isso,
precisa que as comunidades sejam protagonistas das mudanças.
Um
indicativo de que a estratégia tem funcionado é o fato de que outros setores da
comunidade e da secretaria terem começado a participar e reivindicar. Na terceira
reunião da comunidade de Emboacica, um produtor de mandioca procurou apoio para
comercializar sua cultura, um membro do conselho de segurança reivindicou apoio
para as questões de segurança. Do lado do serviço a procura foi do setor de vigilância,
que se prontificou em participar das reuniões e debater questões relacionadas ao
setor.
CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS
Em nenhuma
das três comunidades foi imposta a reunião como forma de atender alguma
reinvindicação, mas perguntado se gostariam de ser ouvidos. Nem os assuntos discutidos
foram impostos. Não existe um “pacote pronto”, todos os assuntos/dinâmicas surgem
e surgiram da comunidade e foram encaminhadas com o maior respeito possível,
porém sempre tomando o cuidado de resumir a discussão no final para que a
comunidade não tenha a sensação de que foi apenas” blá-blá-blá”. Segundo Freire
(1987) o diálogo criticiza e promove os participantes do círculo. Assim,
juntos, recriam criticamente o seu mundo: o que antes só absorvia, agora
contribui com as soluções. E ousamos dizer que quando têm suas reinvindicações
atendidas, suas ideias implantadas, sentem-se parte e passam a efetivamente a
ser SUS.
A carência
de diálogo parece ter sido a maior questão enfrentada e parcialmente resolvida
pelos trabalhadores até o momento, pois muitos dos problemas apontados e
enfrentados não estão equacionados. Essa escuta, que também pode ser traduzida
como “dar a palavra”, reconhecer o direito de falar, criticar, questionar,
propor, é de fato cuidado. Prado, Falleiro e Mano (2012) dizem: “Escutar é
cuidar. A escuta atenta e generosa das versões, verdades, crenças e das
histórias do outro se refere a um tempo em que o cuidador abdica da fala e presta
atenção a quem fala, a quem conta e confessa.” Talvez essa seja a chave do
sucesso da iniciativa.
Temos
convicção que ainda é cedo para afirmar que a experiência é sucesso, mas se acredita
que o diálogo com a comunidade é o caminho a ser percorrido cada vez com mais
intensidade. Espera-se também que essa vivência seja generalizada para todo
município e resulte, não apenas em melhoria dos processos de trabalho e
assistência à comunidade, o que sem dúvida já começou acontecer, mas que dê
origem a políticas de saúde e a uma forma de participação popular mais
orgânica, organizada e menos cartorial do que “estão os conselhos de saúde”.
Quem sabe os grupos (hoje totalmente espontâneos) não venham ser os conselhos
locais de saúde de amanhã?
REFERENCIAS
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federativa do Brasil. FEDERAL, S. Brasília: Senado Federal. 1 2010.
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Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ed.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
IBGE.
Dados demográficos de Dias D’Ávila. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=291005&idtema=119&search=bahia|dias-d`%C3%81vila|estimativa-da-populacao-2013> Acessado em: 10 nov. 2013.
MENDES,
E. V. Os sistemas de serviços de saúde.
Fortaleza: Escola de Saúde Pública do Ceará, 2002.
MINAYO,
M. C. D. S. Saúde e doença como expressão cultural. In: MYNAIO, M. C. S.;
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PRADO,
E. V. D.; FALLEIRO, L. D. M.; MANO., M. A. Cuidado, promoção de saúde e educação
popular – porque um não pode viver sem os outros. Rev APS, v. 14, n. 4,
p. 464-471,2011.
PRADO,
E. V. D.; SANTOS, A. L. D.; CUBAS, M. R. Educação em saúde utilizando rádio
como estratégia. Curitiba: CRV,
2009.
ZITKOSKI,
J. J. Diálogo/Dialogicidade. In: STREECK, D. R.; REDIN, E., ZITKOSKI, J. J. (Org.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autentica, 2008. p.130-131.
[trabalho aprovado para apresentação na EXPOGEP entre dia 02 e 4 de fevereiro de 2014]
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