PROCESSO SAÚDE/DOENÇA E A ENFERMAGEM
Ainda hoje a
maioria dos profissionais de saúde, Enfermeiros, Nutricionistas, Psicólogo,
Médicos, Terapeutas Ocupacionais, Fisioterapeutas, Odontólogos, Farmacêuticos,
enfim, praticamente todos os profissionais da área de saúde, entendem saúde
como sendo ausência de doença. Ou seja, que ter saúde é não estar doente, e
doença significa ter uma dor, uma ferida localizada inequivocamente em uma
parte do corpo.
Este
entendimento, apesar de não ser orgânica da população, acaba assumida por parte
dos usuários do serviço de saúde, não importa se público ou privado. Isso
acontece de forma contraditória, pois a população associa a percepção biomédica
dos profissionais com outras mais subjetivas[1].
Desta concepção
biologicista é que deriva a falta de integralidades nos serviços de saúde, por
consequência o não atendimento das demandas por cuidados que vá além dos
aspectos meramente biológicos.
A concepção de saúde determina as
práticas profissionais desenvolvidas no cotidiano dos serviços de atenção à
saúde[2].
Esta é um reflexo da conjuntura
social, econômica, política e cultural da época em que se vive e não é
percebida da mesma forma por todos. Consideram-se ainda valores individuais,
concepções científicas, religiosas, filosóficas[3].
Saúde/doença já
foram pensadas como merecimento ou castigo divino. Nestas épocas os cuidados de
enfermagem consistiam basicamente de fazer a vontade divina, contribuir para
que os pecados fossem expiados para voltar a ter saúde ou realizar a passagem
para o mundo sobrenatural. Nestas épocas
O conhecimento dos meios de cura conferia poder no
seio dos grupamentos humanos, e o homem, aliando tal conhecimento ao
misticismo, fortaleceu esse poder e apoderou-se dele, transformando-se muitas
vezes em figura mística ou religiosa para aplacar a forças do mal[4]:7.
Centenas de anos
se passaram desde estas épocas remotas da humanidade. Novas concepções foram
sendo incorporadas, mas o entendimento mágico religioso ainda perdura em muitos
lugares e em muitas culturas, seja urbana ou rural, apesar dos esforços
racionalizantes dos defensores da ciência cartesiana.
Uma forma de
entendimento de saúde/doença, que perdura apesar das evidencias demonstrarem
estar ultrapassado, é diretamente responsabilidade dos profissionais de saúde.
Esta concepção define saúde como não estar doente ou não ter uma dor. Este é o
resultado lógico da concepção mecanicista da vida derivada da ciência
cartesiana[5]. A
consequência disto é o serviço, ou seja, o Sistema Único de Saúde - SUS, ser
estruturado para retirar, arrancar, extirpar a dor, a ferida. Em alguns casos
pensa-se em evitar a dor e a ferida. Ou seja, prevenção. Mas ainda assim não perde de vista a questão
da dor, da ferida, dos agravos, sobretudo biológicos.
Os profissionais de saúde e também a
população apreenderam durante anos uma prática em saúde que não buscava o olhar
integral. Com a reforma, é necessário incorporar e construir uma nova concepção
de saúde, capaz de compreender o indivíduo no contexto de uma coletividade e
dos problemas que dela emana. Esse desafio remete à questão da formação
profissional e de novas práticas sociais[6]:58.
Para quem acredita que essa discussão é
muito abstrata e que na prática esta não é uma questão fundamental, ressalta-se
o que diz Thomaz em texto de Minayo¹: “O
problema das ideias que a gente tem, o problema das questões que a gente pensa
é que aquilo que a gente pensa é real nas suas consequências.” Batistella² diz
que
Os conceitos são
a referência da prática. Traduzem-se nas opções de conhecimento necessário, no
desenvolvimento de métodos, técnicas e instrumentos para a intervenção e, em
última análise, na própria forma de a sociedade organizar-se para provê-la (a
saúde) ou evita-la (a doença).
Portanto se gestores e profissionais acreditam que
saúde é simplesmente o resultado de não estar doente, o serviço de saúde será
organizado para evitar ou curar a doença e, as demais atividades serão
desconsideradas. Nesta concepção cabe ao Enfermeiro apenas fazer o curativo,
entregar a medicação, deixar o doente o mais confortável possível, enquanto o
médico faz o trabalho principal, ou seja, tirar a dor e trazer a cura.
Cada sociedade organiza seu sistema de
saúde conforme o entendimento que tem do conceito de saúde[7].
Esse entendimento, no Brasil, começou a mudar efetivamente a partir da reforma
sanitária nos anos 70 e culminou com a criação do SUS na Constituição Federal
de 1988. O SUS foi pensado para dar respostas às condições de vida da população
e atender as necessidades integrais. No
entanto, as práticas nos serviços de saúde ainda ficam no básico, no que os
profissionais sentem-se confortáveis em fazer, pois é o que efetivamente
conhecem. Ou seja, ainda praticam saúde como sendo ausência de dor/doença/agravo.
Isto acontece, entre outros motivos, porque a força
de trabalho disponível para gerir o SUS é limitada qualitativamente[8]. Resultado direto do modo de ensino focado no
modelo biomédico, que se estende a todas as profissões da área e não apenas aos
estudantes de medicina, conforme ressalta Da Ross:
[...]
a saúde é entendida assim: tem que ser resolvida aos pedaços, como se ensina na
anatomia. Então, é necessário que existam muitas especialistas em pedaços.
Também tem que ser um jeito de pensar em que só a biologia possa interessar, o
que for social e psicológico não importa[9]:26.
A organização do serviço de saúde
resultante desta concepção reducionista é esta que tem como finalidade
primordial “arrancar a dor”. A maioria dos profissionais de saúde acreditam que
a forma certa e objetiva de fazer isto é pedindo exames e prescrevendo
medicações. E, de um modo geral, estas condutas são prerrogativas históricas do
profissional médico. Então tudo acaba sendo estruturado em torno do saber e do
fazer deste profissional[10].
Aos outros cabe ajudar a cumprir sua missão de extirpar a dor.
A visão mecânica do conceito de saúde ou
da ciência que lhe embasa, ou seja, restrito a doença e as formas de
terapêutica inerentes não deixa espaço de atuação para nenhum profissional e
nem mesmo margem de auto governança para o doentes e/ou sujeitos. Nesta visão o
médico prescreve e suas ordens são leis. Mas se o conceito muda, transforma-se,
amplia-se, modifica-se o significado do
próprio saber e fazer em saúde. “Tal
processo, no entanto, dependerá da mudança conceitual no interior da sociedade
como um todo, para o que profissões voltadas para um sentido de qualidade de
vida, possam contribuir” [...][11]:13.
Trocando em miúdos, isto quer dizer que
antes desta mudança fundamental no entendimento do conceito de saúde, que
deixou de significar ausência de doenças biológica para incorporar valores como
bem estar sócio-financeiro-cultural e espiritual, muda completamente o trabalho
dos profissionais de saúde, sobretudo do Enfermeiro. Se antes os cuidados de
Enfermagem eram apenas cuidar das feridas biológicas, agora incorporaram
dimensões antes inimagináveis, pois precisa realmente ver o indivíduo como um
todo e não como paciente.
A Enfermagem é uma profissão da área de
saúde, ou seja, seu objeto de trabalho é a pessoa. Não necessariamente a pessoa
doente, mas a pessoa que pode ou não estar e pode ou não ficar doente. Deve se
buscar evitar que ela adoeça, se adoecer precisara de cuidar para que se
reestabeleça o mais rápido possível, se a doença não tiver cura deve ser
acompanha-la o mais de perto possível. Além disso, a pessoa para ter saúde de
verdade, conforme a Constituição Federal de 1988 deve ter casa, transporte,
alimentação, escola, acesso a bens e serviços de saúde de qualidade, emprego e
renda suficiente para se manter com dignidade, etc.
Então cuidados de Enfermagem hoje seria
contribuir para que todas estas condições sejam garantidas ao indivíduo, a
família e a comunidade. Isso quer dizer que o trabalho verdadeiro e mais
importante da Enfermagem é promover saúde. E promover saúde exige novos saberes
e novos fazeres. Se antes era simples ser Enfermeiro, bastando fazer o
curativo, hoje o que se precisa saber e fazer, mudou e complexificou. Muitas
vezes anda-se no escuro sem saber exatamente o que fazer em cada uma das
situações que se apresenta no dia-a-dia.
Bem vindo à era da incerteza. Com
certeza agora ficou mais interessante ser enfermeiro, apesar de ser bem mais
difícil.
REFERENCIAS
[1] Minayo MCdS. Saúde e doença como
expressão cultural. In: Minayo MCdS, Amâncio Filho AM, editors. Saúde, Trabalho
e Formação Profissional Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 1997.
[2] Batistella C. Saúde, Doença e
Cuidado: complexidade teórica e necessidade histórica. In: Fonseca AF, Corbo
ADA. (org). O Território e o Processo Saúde-Doença. Rio de Janeiro:
EPSJV/Fiocruz; 2007. p. 25-49.
[3] Scliar M.
História do conceito de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva.
2007;17:29-41.
[4] Oguisso T. As
origens da prática de cuidar. In: Oguisso T, editor. Trajetória histórica e
legal da enfermagem. Barueri-SP: Manole; 2007. p. 03-29.
[5] Capra
F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix; 1982.
[6] Baptista TWdF.
História das políticas de saúde no Brasil: a trajetória do direito à
saúde. In: Matta GC, (Org.). Políticas de saúde: organização e
operacionalização do sistema único de saúde / Organizado por Gustavo Corrêa
Matta e Ana Lúcia de Moura Pontes. Rio de Janeiro: EPSJV / Fiocruz; 2007. p.
29-60.
[8]
Almeida-Filho N. Higher education and health care in Brazil. The Lancet 2011;377(9781):1898-900.
[9] Ros MAd. Saúde e
desenvolvimento. In: ANCA, editor. Pesquisa participativa - condições de vida e
saúde. São Paulo: ANCA; 2008. p. 21-38.
[10] Vasconcelos EM. Educação popular nos serviços de saúde.
3 ed. São Paulo: HUCITEC; 1997.
[11] LEOPARDI, Maria
Tereza. Introdução. (5-18) in: LEOPARDI, Maria Tereza. (org.) Processo de
trabalho em saúde: organização e subjetividade. Pelotas: Editora
Universitária/UFPel, 1998. 64p.
Comentários