A MAIOR PARTE DAS VEZES SINTO FALTA DE VER OS ENFERMEIROS MOSTRANDO SEU SABER E SEU FAZER

Eu trabalho na enfermagem há muito tempo. Cinco anos trabalhei como Auxiliar de Enfermagem em diversos hospitais e Unidade de Saúde em Curitiba. Desde 2004 trabalho como Enfermeiro.
Escolhi ser enfermeiro. Não foi por acaso. Não queria ser médico e não sou frustrado.
Sei perfeitamente que ser enfermeiro é cuidar: do outros, do ambiente, do planeta e do doente. Acredito que a enfermagem pode ser a profissão mais abrangente da área de saúde. A que integra todas as outras, que tem a compreensão mais holística  do outro e do setor. O enfermeiro pode trabalhar no hospital: em UTI, no pronto socorro, no pronto atendimento, no centro cirúrgico, em enfermarias, central de materiais, lavanderia, na administração, na auditória. Pode muito em todos os setores. Mas não precisa trabalhar apenas em hospital. O enfermeiro pode ser fundamental no serviço de urgência e emergência pré-hospitalar, em empresas, em escolas, lar de idosos, clínicas estéticas e em saúde coletiva: equipes básicas, PSF, PACS, na gestão municipal, estadual ou federal. Enfim, o enfermeiro pode ser fundamental em diversas áreas onde o profissional de saúde se faz necessário.
Hoje estou trabalhando como professor em uma faculdade que pretende ser modelo de formação de um Enfermeiro cidadão que responda as demandas sociais. Respeitam-se muito as diretrizes do MEC para forma profissionais voltadas para prevenção de doenças e promoção de saúde. Um enfermeiro que possa, além de ver o sujeito adoecido em determinadas situações, ver o sujeito, cidadão que demanda cuidado em todos os momentos da existência. No dia-a-dia costumo dizer para os alunos que o enfermeiro pode quase tudo quando se trata de demandas de saúde. O Enfermeiro pode ao mesmo tempo em que faz um curativo dar apoio emocional e orientar uma alimentação adequada a cicatrização, por exemplo. Qual outra profissão pode fazer estas três coisa, e bem, ao mesmo tempo? E isto é apenas um exemplo. Muitos outros poderiam ser lembrados.
Mas, infelizmente não se vê muitos profissionais de enfermagem fazendo isto.
É muito comum apresentar uma situação hipotética para o aluno envolvendo, por exemplo, uma gestante com carência afetiva ou acima do peso e o aluno dizer que vai encaminha-la para psicólogo e nutricionista. Ele não vai tentar entender a situação antes, não vai orientar. Vai encaminhar.
Trabalhei em uma cidade no Mato Grosso do Sul em que a Enfermeira da Unidade de Saúde fazia os relatórios da farmácia, do consultório odontológico. E jurava de pés juntos que esta era sua obrigação, mesmo tendo farmacêutico no serviço. De outra parte ela não realizava o acompanhamento de crescimento e desenvolvimento das crianças, nem a suplementação de ferro de crianças e gestantes, pois segundo ela isto era obrigação da nutricionista. Era comum observar a nutricionista se desdobrando em duas ou três para dar conta de medir e pesar todas as crianças enquanto a equipe de enfermagem, técnicos e a enfermeira ficavam na recepção lendo revistas.
Este é apenas um exemplo simples em que ninguém morreu pelo que saiba, pela negligencia da enfermagem. Mas tem outros mais graves. Logo ao me formar trabalhei em um hospital onde havia 16 enfermeiros, mais um gerente de enfermagem. Foi meu primeiro emprego. Peguei meu diploma em junho e 20 dias depois já estava trabalhando no pronto socorro deste hospital. Importante dizer que não era o emprego de meus sonhos, pois sempre tive em mente que meu lugar era no PSF, mas um enfermeiro tem que estar pronto para tudo e, efetivamente saí pronto para começar a trabalhar em qualquer lugar. E como precisava trabalhar, pois não fiz faculdade para por diploma na parede, fui. Geralmente o enfermeiro sai preparado para começar a atuar em todos os setores possíveis. A formação é genérica. Depois vai aprimorando. Ou, muitas vezes, piorando. Depende muito do temperamento de cada um.
O pronto socorro deste hospital era completamente desesperador[2]. Tanto que não parava enfermeiro lá. Faltava estrutura física e material. Isto não havia como negar. A demanda era enorme, principalmente pela falta de assistência em outras esferas da saúde pública. Mas era evidente outra coisa também. E é esta outra coisa que importa neste texto: descaso da equipe de enfermagem.
Havia um Enfermeiro, no caso eu, e mais cinco ou seis técnicos de enfermagem para dar conta do pronto atendimento, sala de pequenas cirurgias, sala de trauma, duas salas oficiais de observação onde ficavam pessoas em observação por até 40 dias aguardando vagas para internar. Além disso, utilizavam-se macas e cadeiras para medicar e observar doentes. Era realmente desesperadora a situação. Lembro que ficava frustrado, desesperado e deprimido com tanto trabalho. Via uma parte da equipe se esforçar, dedicar-se muito, mas outra parte que inclusive desaparecia do serviço e era encontrada deitada no meio do expediente. Servidores que não chegavam no horário para trabalhar e saiam antes. 
Em trinta dias fiz um planejamento para melhorar a situação no pronto socorro e entreguei a direção do hospital. Por conta deste planejamento fui promovido a gerente de enfermagem do hospital. Pediram que eu fizesse um planejamento para todo hospital. Aleguei que não teria como fazer, que era recém-formado e não tinha preparo para isto. Mas fui convencido pelo bom aumento de salário oferecido.
Na gerencia pude perceber com mais clareza que a situação de descaso dos profissionais técnico era só um reflexo do comportamento dos enfermeiros. Poucos se faziam realmente presente no setor a fazer seu trabalho. Muito não chegavam para trabalhar no horário. Outro sempre precisava sair antes para realizar alguma coisa urgente. Havia muitas faltas. Havia poucos enfermeiros no plantão noturno. Era pra ser dois por plantão, mas nas folga ficava apenas um. Então era comum o enfermeiro ajeitar a situação e folgar quando queria. Em alguns dias poderiam existir três pessoas no plantão em outros apenas um. Era comum também, quando havia dois, revezar o serviço e ficar apenas um trabalhando.
Era muito comum toda equipe do setor ir dormir e não medicar os pacientes. Deixa-los sujos durante toda noite, não trocar o soro, não repor medicações nos carros de emergência. Era muito raro as medicações serem feitas no horário certo. Era prática corrente a medicação das 10 horas ser feita as 12 ou 13 horas.
Depois deste emprego fui trabalhar em um PSF e lá havia uma enfermeira que já trabalhava no município havia cinco anos. Perguntei-lhe quais programas estavam implantados e descobri que nenhum. Perguntei por que ela não tinha uma sala para coordenar o serviço e atender as pessoas. Ela disse que o gestor não dava apoio.
Perguntei por que a unidade de saúde tinha duas salas de almoxarifado, Três farmácias, duas salas para vigilância, uma sanitária e outra epidemiológica. Ela responde que sempre foi assim.
Como não tenho compromisso com tradição resolvi desmontar tudo e redesenhar o fluxo de atendimento. Em cinco dias já tinha sala sobrando e a minha era a maior de todas. O gestor não impediu e ainda achou tudo muito bom.
Estou contando tudo isso para perguntar: qual é o trabalho da enfermagem? Ou porque o trabalho é tão ruim?
Desde que trabalhava como auxiliar que observo que o trabalho da enfermagem é muito ruim. Mesmo considerado que sou mesmo muito exigente e às vezes exagero um pouco, não dá para disfarçar: o trabalho da enfermagem é muito ruim mesmo. Só da enfermagem não, de todos na saúde, mas não quero falar dos outros. Cada um com seus problemas.
Sei perfeitamente que existem muito exemplos que contrariam essa afirmação. Existem exemplos lindos. Conheço alguns. Mas conheço dez vezes mais exemplos ruins. E é preciso reconhecer que a maioria é ruim demais, mesmo não sendo o tempo todo e tendo justificativa. Mas porque é tão ruim?
Refletindo sobre a região onde trabalho nos últimos dois anos, ou seja, nordeste da Bahia e centro sul de Sergipe, poderia dizer que os exemplos são terríveis. Há neste região uma demanda muito grande por formação na área de enfermagem. Infelizmente os alunos já veem para escola com esses exemplos: profissionais que trabalham pouco fazem praticamente nada, chega a hora que quer, trabalhar em dois ou três empregos ao mesmo tempo e ganham bem. Geralmente o emprego depende de um padrinho político.
Parece exagero tudo isto e talvez seja. Mas o exemplo que trago é muito bom para ilustrar isto:
Por volta das 16 horas estive em um pronto atendimento da região. Quando entrei um servidor me empurrou para outro. E, sem tirar o olho da tela do computador disse: não tem mais vaga.
Ai fui encaminhado para um sala onde determinado profissional deveria me avaliar e decidir se poderia ou não passar por consulta[3].
Eram três profissionais de enfermagem. Dois técnicos e uma enfermeira com cara de recém-formada. Ela estava em pé de braços cruzados e assim continuou. Outro lia uma catálogo de compras da AVON e a terceirar parecia que fazia alguma coisa.
Perguntei, depois de um tempo sem ser notado, se poderiam me atender. Ai perguntaram o que eu queria. Mas apenas por formalidade. A enfermeira logo disse que não havia vaga.
A enfermeira não perguntou meu nome, o que eu sentia, porque estava ali. Não quis saber onde eu moro, quantos dias estava com a doença, se estava seguindo o tratamento, se estava usando alguma medicação. Não orientou sobre os cuidados para não infectar outras pessoas. Nada. Não anotou uma demanda não atendida ou a existência de uma doença infectocontagiosa que poderia infectar outras pessoas na cidade. Nada. Simplesmente afirmou que não havia vaga.
Então é de se perguntar ou não qual é a função da Enfermagem no serviço de saúde?
Será que uma pessoa precisa mesmo estudar quatro mil horas para fazer isto que ela fez?
Mas o que ela poderia fazer a mais?
Será que ela queria fazer mais alguma coisa?
Comecei este texto dizendo que a enfermagem pode fazer muito coisa, pode trabalhar em muitos setores, resolver muito problemas. Mas, apesar disso a maioria dos praticantes desta profissão prefere dizer: não tem vaga. Ou seja, portar-se como secretários de médicos.
Mesmo considerando que a hierarquia rígida dos hospitais impedem muitas práticas autônomas do profissional de enfermagem, ainda há que questionar se a enfermagem esta preparada para cuidar das pessoas com autonomia. Se têm disposição para isto.
É inegável que as pessoas vão aos hospitais e centros de saúde procurar pela atenção médica. As pessoas querem ver o médico, ser atendida pelo médico, pegar um pedido de exame e a receita de medicamento. Esse é o comportamento de grande parte da população. Este comportamento é motivado pela postura do próprio profissional[4]. Mas não se trata de procurar culpados além do próprio enfermeiro. Ele é vítima disto e ao mesmo tempo o responsável.
O cidadão comum não vai necessariamente procurar o médico. Ele procura uma pessoa que possa ouvir seus problemas, considerar suas necessidades. O sujeito comum procurar o médico, em seguida o padre ou a benzedeira. Para ela não há contradição nenhuma nisto[5]. E para mim também não.
Então porque ele não procura o enfermeiro?
O serviço de saúde é montado para favorecer a figura do médico. É o que se chama modelo biomédico. O único profissional que realmente tem valor nesta situação é o médico. Todos os outros são figuras para lhe ajudar. Esse é inegavelmente o comportamento dos serviços, do médico e do enfermeiro. E grande parte deles prefere que seja assim.
É cômodo, é confortável e não há riscos. Se cabe ao médico a palavra final, se acerta ou era é mérito dele. O enfermeiro não se arrisca fazer muita coisa além da triagem ou da pré-consulta para não errar. Se não era também não acerta. Pré-consulta ou triagem não tem nenhuma valor do ponto de vista do trabalho da enfermagem e nem do ponto de vista da população. O cidadão que vai a um serviço de saúde não quer a pré ou a triagem. Ele quer ter seu problema ouvido por alguém que possa ao menos lhe dar uma resposta. Que resposta existe nestes serviços?
Esse é o destino da Enfermagem? Fazer pré-consulta? Precisa mesmo estudar tanto para fazer isto? Se é isso que a maioria quer fazer não seria melhor oficializar que somos uma profissão sem um saber específico e instituir cursos técnicos de 6 meses. Poderia inclusive mudar o nome da profissão para auxiliar de médico.

REFERENCIAS
__________________________________
[2] Mais sobre isso conto no texto: Os caminhos que me trouxeram até aqui. Publicado no livro: Vivencias de Educação Popular em atenção primária à saúde. A realidade e a utopia. Editora EDUFSCAR, 2010.
[3] Chamam isso de acolhimento, mas nada mais é do que triagem. No caso desta situação nem triagem era.
[4] MINAYO, M. C. D. S. Saúde e doença como expressão cultural. In: MINAYO, M. C. D. S. e AMÂNCIO FILHO, A. M. (Ed.). Saúde, Trabalho e Formação Profissional. . Rio de Janeiro: FIOCRUZ, v.1, 1997.  
[5] MINAYO, M. C. D. S. Saúde e doença como expressão cultural. In: MINAYO, M. C. D. S. e AMÂNCIO FILHO, A. M. (Ed.). Saúde, Trabalho e Formação Profissional. . Rio de Janeiro: FIOCRUZ, v.1, 1997.  

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