UMA PROVA



Estava fazendo inscrição para tutor de um curso de Especialização em Saúde da Família e a última questão era dissertar sobre o meu sonho para saúde pública brasileira. Veja o que deu:

EU VI, NINGUÉM ME CONTOU

Temei a liberdade de utilizar aqui a introdução e a conclusão de um artigo que estou confeccionando. Fruto de um pesquisa que fiz em 2008 na equipe em que trabalhava. Achei muito apropriado ao tema proposto, pois descreve, mais do que meu sonho para Saúde Pública Brasileira, a vivencia de um pouco deste sonho, desta utopia, entendendo que utopia é a realidade que ainda não está sendo vivenciada pela maioria.

Sai da faculdade de enfermagem em Curitiba, Paraná, em junho de 2004. Menos de 20 dias depois estava trabalhando em um pronto socorro no norte do Espírito Santo. Mas eu desejava atuar na Saúde Coletiva, por isso seis meses depois fui trabalhar em uma Estratégia Saúde da Família (ESF) em Rio Negro – MS, uma cidade com aproximadamente cinco mil habitantes localizado na “beira do Pantanal”, 30 quilômetros do pantanal sul-mato-grossense.  
 Fiz essa opção porque queria colocar em prática um modo de fazer saúde, reafirmado pela Portaria 648/2006, no qual eu acreditava.    Desejava ir além das atividades administrativas e assistenciais mínimas esperadas de um enfermeiro na gerência de uma ESF. Queria o novo, queria andar na rua, fazer programa de saúde na rádio comunitária, organizar grupos nas comunidades, conviver com a equipe, participar das festas, das lutas, das alegrias e até das tristezas da comunidade. Enfim, queria ser um enfermeiro não apenas na tradição nightingaleana, mas também na tradição cristã, pois no período cristão as enfermeiras já faziam visita domiciliar e foram as verdadeiras percussoras da Estratégia Saúde da Família (ESF) (Oguisso ,2009).  E principalmente um enfermeiro engajado na construção de uma sociedade mais justa e solidaria, da qual o Sistema Único de Saúde (SUS), faz parte. Queria participar da construção/efetivação de um serviço onde o enfermeiro é parte da estrutura humana responsável por proporcionar bem-estar à população. E este é mais que não estar doente ou não ter uma dor (Prado, Stein, Pereira, 2012).  Não havia vivenciado isto ainda em parte nenhuma, era apenas um sonho, mas acreditava ser possível. E foi.
Este artigo tem o objetivo de discutir de forma crítico-reflexiva a realização deste “sonho”. Tem por base a pesquisa realizada como trabalho de conclusão de curso (TCC) intitulado: Mudanças na atenção primária após a implantação dos pressupostos da estratégia saúde da família na perspectiva da educação popular realizada na Especialização em Saúde Pública da Escola de Saúde Pública Dr. Jorge David Nasser de Mato Grosso do Sul em parceria com a ENSP/Fiocruz.
No referido estudo foi possível identificar que   a população entrevistada falava da equipe e do fazer cotidiano com afeto, admiração e até gratidão. Reconheciam as mudanças no fazer técnico, na estrutura, no vínculo. Percebe-se nas falas de usuários e servidores a questão do diálogo, da participação, da diversidade de abordagens, da autonomia, do empoderamento, do orgulho de estar fazendo algo novo, diferente e da satisfação por se sentir valorizados.
Os princípios da Educação Popular contribuíram de forma significativa na implantação e gestão deste sonho realizado na ESF de Rio Negro-MS por suas premissas básicas: diálogo e participação com autonomia. Diálogo entre a equipe e entre a equipe e a população.   Segundo (Prado, Falleiro, Mano 2010, p.469) a Educação Popular pode “ser um jeito de fazer, jeito de se comprometer com a construção de autonomia.” Essa interpretação era realizada em Rio Negro, como será demonstrado ao longo do artigo.
Entendendo agora, mais do que na época, que o modo como o trabalho foi realizado em Rio Negro foi um exemplo do que a estratégia saúde da família pode conseguir se tiver a intencionalidade de mudar o eixo central da doença para o sujeito, como fala portaria 648/2006 no item que diz que a proposta visa reorganizar a atenção básica e através dela reorientar o modelo assistencial de saúde. Esta mudanças ainda é um sonho na maioria do Brasil, mas é um sonho que comecei a viver na minha equipe. O resultado da pesquisa mostrou como a Educação Popular pode colaborar para que a Estratégia Saúde da Família caminhe na direção de cumprir o que lhe foi atribuído pelos documentos oficiais do Ministério da saúde. Uma destas atribuições é mudar o modelo assistencia l e ter seu foco no ser humano e não na doença e nos procedimentos voltados para doença, situação coerente com as propostas da Educação Popular em Saúde. Para conseguir essas mudanças é preciso, como fala Prado, Santos e Cubas (2009), envolvimento da comunidade e dos profissionais, situação que a pesquisa evidenciou estar acontecendo em Rio Negro. Essa evidencia fica explicita na percepção e aceitação das mudanças por parte da comunidade e dos servidores, pela satisfação professional da equipe, engajamento no “modo de fazer” da EPS, o que inclui a aceitação do outro, da humanização das relações.
A Política Nacional de Atenção Básica reforça, em diversos artigos e capítulo a necessidade do serviço de saúde ser um espaço de construção de autonomia e participação cidadã (BRASIL, 2012), preocupação que é também da EPS. A equipe de Saúde da Família da área urbana de Rio Negro, caminhou com esta compreensão, mas entendendo que a participação cidadão não é mera formalidade e não se dá apenas no acesso ao serviço, mas na possibilidade de realmente ser ouvida e intervir nas decisões, como fala Brandão (2002) e é reforçado na Constituição Federal de 1988.

REFERENCIAS

BRANDÃO, C.R. A educação popular na escola cidadã. Petrópolis: Vozes, 2002.

BRASIL. Senado Federal. Constituição da república federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal. 2010.

BRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde 2012.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria 648 - Política nacional de atenção básica. Ministério da Saúde; 2006.

OGUISSO, T. As origens da prática de cuidar. In: OGUISSO, T. (Ed.). Trajetória histórica e legal da enfermagem. Barueri-SP: Manole, v.1, 2007.  p.03-29. 

PRADO, E. V. ; STEIN. A. V.; PEREIRA, R. A compreensão da história da enfermagem a partir dos métodos ativos de ensino/aprendizagem da faculdade AGES”. Revista de Educação Popular, v.11 n.2 (no prelo).

PRADO, E.V.; FALLEIRO, L.D.M.; MANO. M. A. Cuidado, promoção de saúde e educação popular – porque um não pode viver sem os outros. Rev. APS, v. 14, n. 4, p. 464-471, 2011. 

PRADO, E.V.; SANTOS, A.L.; CUBAS, M.R. Educação em saúde utilizando rádio como estratégia.  Curitiba: CRV, 2009.

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