TESTEMUNHO: MORRER FAZ PARTE DA VIDA

Tenho um amigo que está com o pai vivendo seus últimos dias. Um câncer de laringe ou esôfago, não lembro agora. Apesar de viver os efeitos há oito anos o diagnóstico só foi feito há pouco mais de seis meses. Até então “era um problema de tireoide ou amigdalite ou irritação das cordas vocais”.

Meu amigo mora mais ou menos 100 metros de minha casa e hoje bateu em minha porta pedindo ajuda. Disse que o pai estava com a respiração estranha e tinha passado a noite com dificuldade.

Fui até ele. Deparei-me com o seu pai já bastante magro. A voz apenas um fiapo, mas cumprimentou-me com toda elegância de outrora. Seu Agenor, vamos chama-lo assim, era uma pessoa muito ativa antes de adoecer e mesmo depois, enquanto ainda aguentava, manteve-se digno e dono de seu destino. Lembro-me dele pela cidade, em sua casa. Como era falante, imponente em suas opiniões, como recebia bem os amigos em casa.

Logo no inicio de sua doença estive lá. Estava acamado. Mesmo assim, fez questão de receber os vizinhos na sala. E eram muitos, muitos vizinhos estiveram naquela casa durante o fim de semana. E, mesmo deitado em uma cama na sala, comandava a família e os afazeres em torno da hospitalidade. Para ela era uma questão de respeito aos vizinhos recebe-los e deixar claro: “ainda estou aqui.”

Seu Agenor, nesta manhã, estava bem, apesar de tudo. Pulso regular, respiração tranquila, pressão arterial dentro da normalidade. Pulmão sem roncos ou chiados. Apenas um pouco hipotérmico.

Alguns minutos após minha avaliação chegaram outros dois Enfermeiros na casa. São experientes e entusiasmo com o sérvio de urgência/emergência e UTI. Entraram correndo, como se houvesse uma emergência. Foram direto para o quarto e só depois de avaliar seu Agenor, perceberam que estávamos por ali.

Fiquei impressionado com a agilidade e a capacidade clínica dos dois. Em poucos minutos fizeram uma série de diagnósticos de Enfermagem e já estava ditando para família o que fazer, como fazer e porque fazer.

Com uma folha na mão meu amigo fazia anotações:
Caixa de luva, luva estéril, Ampolas de KCL, Glicose, Glicosímetro, Soro fisiológico, Ringer Lactato e por ai foram.

Distrai-me com alguma coisa e quando percebi já estavam ditando o necessário para montar uma UTI no quarto. Falavam em ampolas de adrenalina, atropina, ambu e cilindro de oxigênio, para o caso de ocorrer uma parada cardiopulmonar.

Então disse:

- Se por acaso houver uma parada vocês estão pensando em reanimar?
- Claro, temos que fazer todas as manobras.
- Mas será que é isso que seu Agenor quer? Será que é isso que a família quer? Será que isso é mesmo o mais certo a fazer?
- Meu pensamento é fazer tudo que estiver ao nosso alcance.
- Entendo perfeitamente, mas será que isso é o melhor a fazer? Reanima-se uma pessoa para viver mais uma semana ou duas? Não é mais digno deixar a vida seguir seu curso?
- Enquanto há vida há esperança.
- Temos que encarar os fatos: não vamos conseguir curar seu Agenor. A situação dele é muito séria. Apenas um milagre pode salvar sua vida. Será que fazendo tudo que estão propondo não vai apenas prolongar o sofrimento dele e da família?
- Nossa intenção é melhorar as condições de Seu Agenor, Hidratar, fazer ele ganhar massa muscular para continuar o tratamento.
- Entendo o que estão dizendo e não vejo nada de errado na intenção de vocês. Acho até que estão certos, mas volto a questionar: não será melhor deixar seu Agenor morrer com dignidade? Será digno prolongar a vida dele para além de um sofrimento aceitável?

Limitei-me a dizer apenas isso. Poderia ter falado tudo que pensava, mas esta não é uma discussão agradável. Será que é mesmo necessário por um avental em Seu Agenor? Será que ele não iria preferir ficar em um quarto com cara de quatro e não de UTI? Será que é mesmo necessário passar sonda vesical para fazer controle hídrico? Será que é melhor perguntar a ele o que prefere? Ou será que a decisão entre viver o sofrimento mais um poucos ou diminuir o tempo de dor não cabe ao maior interessado?

Os profissionais de saúde aprenderam a chamar para si a responsabilidade de decidir o que é bom e ruim para as pessoas. São os donos do saber, da ciência. Já faz tempo que estão prolongando a vida das pessoas de uma forma absurda como se a morte fosse o fracasso da assistência/cuidado, da pessoa.

O fracasso dos profissionais de saúde está em não conseguir fazer diagnósticos em tempo da cura ser possível. E essa dificuldade não é técnica, na maior parte das vezes, mas humana. A história de seu Agenor mostra que o problema foi falta de escuta, atendimentos apressados e prepotência demais para ouvir a opinião do sujeito que demanda cuidado.

O fracasso dos profissionais de saúde está justamente em não conseguir prevenir as doenças, em não conseguir promover saúde, dignidade e cidadania. O fracasso está, por último, em não admitir que muitas vezes o melhor é deixar a vida seguir seu curso na hora certa.

É possível morrer com dignidade. E cuidar pressupõe reconhecer que essa hora vai chegar e ajudar a pessoa e a família a aceitar e fazer a passagem da maneira menos difícil possível.

Lembrei do Pedro (colega de crenças e lutas lá da Paraíba) ao vivenciar essa história. Pedro disse, no encontro estadual da ANEPS Sergipe em Julho de 2010, que Educação Popular é uma filosofia. Coisa que concordo plenamente. Lembrei-me dele porque constatei na pele que viver a Educação Popular, mesmo numa hora urgente como esta, quando parece que o tempo vai se esgotar, é problematizar e dizer: será que essa decisão é nossa? Não é melhor ouvir todas as partes envolvidas?

MANIFESTAÇÕES

1.

Estava conversando com meu pai sobre a falta de capacidade de escutar e respeita o outro, minha vó está internada há quase um ano, está com efisema pulmonar, e ele estava reclamando que os tecnicos de enfermagem entram no quarto duas da manhã falando alto e acabam acordando ela de duas em duas horas, sem necessidade e de toda a falta de humanização e percepção. As vezes me sinto muito só em alguns processos, e sem força nadando contra a correnteza. No meu dia a dia me deparo com muitos profissionais que ao meu ver ´perderam o foco humano e só consegue enxerga a as doenças.
Grata por dividir suas impressões, sei que são muitos os que pensam como eu, mas as vezes todos ficam muito distantes.


Taís de Deus


2.
Já leram o texto dos Companheiros da rede Gert wimmer e Marcus Matraca a
Dialogia do Riso? Acredito ser uma ótima reflexão sobre como a finitude
pode acontecer sem interferência desse maquinário todo e sim com a
verdadeira Humanização e vontade de cada um. Menos intervencionismo e
mais vida que deve ser vivida até o fim.

Rogério

3.

Perante essa situação, quebro meu silêncio na lista somente para dizer que faço minhas suas palavras, suas indagações.

Letícia

4.

Quebando o silêncio II

Minha mãe está internada há 34 dias na UTI semi intensiva do Hospital Geral Roberto Santos em Salvador-BA, um AVC isquêmico de grande lastro está nos levando a todos (minha mãe e nós familia), a ter uma expência bastante difícil com as diversas equipes que se revezam no plantão. Uma coisa posso dizer: a humanização é postura individual e bastante pontual naquela emergência.

Com amor

Maria Bezerra

5.

Algumas questões me tocam mais do que outras, embora com certa freqüência não me manifeste nesta rede mesmo com temas ou episódios que me tocam bastante.

Mas esse compartilhamento em torno das condutas ditas técnicas nos serviços de saúde me afeta, pois também vivi muitos momentos difíceis por ocasião, primeiro do adoecimento e posterior morte de meu pai, há mais de 10 anos. Depois, outro processo durante o adoecimento e morte de minha mãe, há 3 anos. Na época, eu pensava que os problemas eram ou técnicos, ou relacionais. Hoje, penso que essa é uma separação que ainda fazemos em questões que não estão separadas de fato. A conduta técnica mais adequada numa dada situação pode não ser a mesma de outra situação. A técnica não prescinde de um modo de ver a vida e o mundo, de um modo de fazer que lhe dá sentido e consistência. Por isso, não consigo entender que o que muitos profissionais de saúde fazem é tecnicamente correto se o que é feito não leva em consideração o outro, o Sujeito, a família, a cultura e os modos de viver dessa família, os ditos e os não ditos, como circula o afeto entre eles, qual o desejo desse outro.
Quando meu pai faleceu, ele queria viver, estava lúcido e brigou até o último segundo para viver, e tivemos a sorte de, mesmo no hospital, poder abraçá-lo até o fim. Quando minha mãe faleceu, estava inconsciente há 45 dias, tinha já um cansaço da vida e uma esclerose que a impedia de investir em novos projetos. Não pode haver resposta técnica igual em duas situações tão distintas. Quando o médico responsável nos perguntou se queríamos ou não que entrássemos com algumas medidas, pedimos a ele um tempinho e nos reunimos, os três filhos. Pensamos juntos, choramos, dissemos coisas que nunca havíamos dito, conversamos inclusive com minha mãe, em coma. Decidimos e conversamos com o médico para não entrar com medidas de prolongamento da vida. O que também não foi nada fácil, entre outras coisas porque nos trouxe uma sensação de onipotentes e fazê-la viver ou morrer.
Mas ainda não era hora, e ela sobreviveu mais pelo menos 15 dias, talvez para nos mostrar que não éramos deuses nem culpados por sua sorte...

Raquel

6.

Meu querido Ernane, amig@s

Por ter já vivido estas situações limites com minha mãe e outras pessoas queridas de quem cuido como psicóloga, restam-me muitas indagações: aí estão as máquinas: a nosso serviço? a nosso desserviço? E a morte? Poderia ter sido evitada se... O angustiante Se eu tivesse feito isto, se tivesse tido outra equipe, outras máquinas, outros procedimentos, ...Se...SE...E a vida? Como pode ser vivida... como deve ser vivida ... Vida forçada, felicidade obrigatória, corpo dócil... São indagações que encontram ressonâncias no poeta palestino Mahmoud Darwish quando pergunta: “ Para onde devem voar os pássaros depois do último céu” .


Lúcia


7.

Na faculdade tenho me deparado muito com a questão da vida e da sobrevida.

Na vida tive somente uma experiência, quando minha bisavó adoeceu e minha avó disse que se ela já não podia mais falar de suas vontades não estava viva, independentemente do que a família queria e insistia em fazer. Com a minha avó aprendi que cada um deve ter o poder de decisão sobre sua própria vida, quando este não pode decidir precisamos ser fortes e decidir pelo menor sofrimento.

Penso que, em alguns momentos, independentemente do quão humanizado seja um serviço, um profissional isso não vai fazer as coisas serem menos assustadoras, mas a nossa abstinência frente a morte faz essas pessoas necessárias, então, que elas sejam o mais humanas possível, que vejam o sofrimento de uma forma mais próxima e que possam lidar com ele.

Enfim, tanta coisa pra dizer, esse é um assunto que me mobiliza, porque eu aprendi a acreditar que sobreviver é muito diferente de viver e eu, só luto pela vida.


Daniela

8.
Essa discussão tem me tocado fortemente e talvez eu não seja capaz de expor o que sinto devido a emoção que me toma a cada depoimento. No momento estou vivendo uma situação bastante difícil pois minha mãe (51 anos) esta enfrentando um tumor cerebral (oligodendroglioma), ela já passou por uma cirurgia que foi dita bem sucedida, e de fato não houve sequelas. O próximo passo foi o tratamento quimioterápico e radioterápico por um ano, mas durante a químio minha mãe sofreu de uma baixa de leucócitos que não se revertia o que implicou em um intervalo de uns 3-4 meses no tratamento. Em decorrência disso, acredita-se, ela teve o lado direito do corpo e o esquerdo da face ( o mesmo lado da cirurgia) paralisados. Houve uma nova internação e os medicos diagnosticaram um aumento nas células cancerígenas que estão dispersas e ocupam inclusive uma região responsável pelo sistema motor e dado este quadro uma nova interveção cirúrgica foi descartada sendo indicado à minha mãe o prosseguimento do tratamento quimioterápico com talidomida e themodal. O que me preocupa é a distância que o corpo médico responsável por estas decisões está da nossa família, tentei me comunicar com o chefe da equipe para entender melhor esta opção e questionar sobre a possibilidade de diversificar o tratamento mas isso não é possível... não sou da área da saúde, mas sei das inúmeras incertezas que tangem esta área e sendo assim parte do que ele propõe está embasada em uma escolha do médico baseada em seus valores pessoais não seria mais justo que esta escolha fosse nossa e da minha mãe que está lúcida mas não se sente motivada e nem com forças de tomar a frente da luta pela sua saúde???
Me sinto excluida de um processo que interessa muito a nós familiares... acho que essa retirada de possibilidade de compreender e lutar contra a sua doença dificulta inclusive uma postura mais ativa do paciente, e acredito que esta postura mais ativa poderia ajudar e muito no tratamento. A vida de entrega que minha mãe tem vivido não faz bem nem para quem tem saúde perfeita...

Fica aqui um depoimento ... e também um pedido de ajuda.

Erida.

9.

É tão gratificante e emocionante ler esse texto. Como a gente pode aprender com as histórias vivenciadas pelos outros. Cada dia que passa aprendo muito com todos vocês.

Trabalhei 2 anos e meio em um Centro de Oncologia e cansei de presenciar atitudes como está. Na maioria das vezes não paramos para observar e ouvir nossos pacientes e principalmente seus familiares.

Nunca tinha pensado na Educação Popular desta forma, e analisando os pensamentos de Ernande, percebo como é grandiosa essa filosofia dita por Pedro.

Obrigada pelos ensinamentos e por poder compartilhar isso tudo com vocês.

Valéria


10.

Essa série de mensagens intitulada: "muito longa" iniciou quando eu estava distante e com difícil acesso à internet. Dizia para mim mesma: quando chegar, na minha casinha, com um copo de chá de hortelã do lado e ouvindo minha musiquinha eu leio tudinho! E faz pouco, li... E não é nada muito longa e sim muito linda! Muito breve é essa nossa vida que nos dá a chance de partilhar momentos valiosos e aprender um pouco com a angústia de todos.

Sobre a morte ou a iminência dela, creio que ela é um soco no estômago da "nossa" prepotência "médica". Decisões sobre o investimento ou o prolongamento não são de um só "deus" humano, mas de um diálogo sincero. Um pouco de humildade perante o nascimento e perante a morte é sempre necessário! É aceitar que as pessoas nascem e se vão, boa parte das vezes, sem nos pedir licença. Já quase se mecanizou o nascimento e se tenta fazer o mesmo com a morte. Se para os dois extremos da vida há protocolo e data marcada, então o que nos resta do caminho, da vida-vivida?

Para mim, essa tranquilidade frente ao inevitável e a humildade frente ao que faz parte da vida me trouxe uma das experiências mais valiosas que vivi como médica. Cuidava, no domicílio, de um paciente de 60 anos com uma doença degenerativa importante e progressiva. Ele teve uma pneumonia que evoluiu, foi hospitalizado e nem todas as consultorias ao neurologista, ao internista e ao infecto faziam diferença no quadro dele. Cada dia, mais sofrimento para ele e para a família. Sentamos todos, eu, esposa e filha e conversamos como parceiros de uma longa jornada. "Confessei" minha impotência. Sabíamos todos de tudo e desejamos, juntos, que não mais houvesse sofrimento. E a vida tomou seu caminho de volta, com muitas histórias para contar...

Falam de medidas heróicas para prolongar a vida e eu creio que o verdadeiro heroísmo, a maturidade da alma, a beleza de ser simplesmente, é enfrentar a perda e fazê-la digna. Para isso é preciso ter coragem, estar livre de culpas, estar livre do nosso egoísmo e cheio de amor pelo outro. Um amor verdadeiro exige renúncia e desapego. Um amor verdadeiro permite que o outro se vá, que deixe de sofrer, que descanse e deixe, em seu vazio, a certeza de que sempre vale a pena. E dormimos serenos com a consciência tranquila de que, sim, esse era o máximo que poderia ser feito.

Maria Amélia


Comentários

Iares disse…
Como foi gratificante e importante ler esse texto. Nele está inserido tudo aquilo que nós profissionais da saúde precisamos para entender a diferença entre prestar serviços e cuidar...
Trabalho na UTI do Hospital Regional de Lagarto-Se e tenho a imensa sorte de vivenciar inúmeros casos como esses até aqui citados.
Busco sempre a melhor forma de lidar com essas pessoas que estão "limitadas" e dependem dos meus cuidados. Para mim é uma experiência única poder estar ali atendendo às suas necessidades, desde uma mudança de decúbito, troca de fraldas ou banho no leito à um gesto de amor, carinho, paz, compreensão...
Adoro cuidar, não tem preço poder estar presente na vida dessas pessoas, cuidando, dando forças, orientando e mostrando o melhor da vida, desenvolvendo dessa forma um bom serviço de saúde.

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